Nossa primeira viagem

Tenho 36 anos, e quando nasci já há algum tempo os DKW não eram fabricados. Ocorre que sempre fui muito próximo dos meus avós maternos, e por um acaso do destino, o vizinho da casa em frente à deles tinha um Belcar, na época já razoavelmente usado. Como eu sabia? Para mim, criança nos meus quatro ou cinco anos, parecia alta madrugada, mas bem poderia ser apenas dez da noite, quando o cidadão voltava para casa. Da escola, trabalho, boteco, jamais soube.

O DKW chegava defronte a janela do quarto onde eu estava, manobrava, o ruído inconfundível do motor dois tempos aumentando enquanto se preparava para enfrentar a ladeira íngreme de sua casa. E lá ia ele, o motor urrando em altos giros e depois emitindo um som de corneta abafado, quando a rotação caía bruscamente durante a subida. Mas subia sempre. Durante muito tempo aquela cena se repetiu. E ficou marcada a lembrança daqueles dias queridos já passados. Assim, o Belcar se tornou meu antigo preferido, e só de trinta anos depois pude resgatar um pouco daquele tempo, ao comprar o meu Belcar.

Encontrei-o na internet, no modelo e cor que eu imaginava perfeitos. Ano 1964, capota branca, corpo preto, portas “dechavê”, bancos também bicolores, restaurado no padrão dos raros modelos “luxo” produzidos apenas naquele ano. Parti do Rio de Janeiro, onde moro, e foram 12 horas de ônibus até Franca/SP. Era meu aniversário e decidi que me daria um belo presente, há muito desejado. Uma rápida avaliação, uma voltinha, documento na mão e resolvi encarar com meu novo/velho amigo a viagem até Campinas, onde vive minha família. Reboque? Heresia! Claro que tinha lá o que arrumar, o carro trepidava na saída, com folga na transmissão, o radiador vazava um pouco, afinal, é um respeitável senhor de 46 anos, mas não hesitei. Ele agüenta.

Meu carrinho talvez não fosse tão solicitado há décadas. Eu estava nervoso, sem intimidade com ele, mas não me contive e lá fomos nós. Ao menos a estrada era muito boa, justificando os incontáveis pedágios. Roda livre engrenada, desbravamos o interior, arrancando sorrisos dos outros carros que passavam, acenos, olhares saudosos, deixando para trás a nuvenzinha de fumaça característica. Fiquei impressionado com a reação positiva das pessoas. Foi uma festa.

Passados mais de 100 km, o Belcar pára subitamente, com sintomas de falta de gasolina. Verifiquei o tanque e estava cheio. Abri o capô e olha daqui e dali, vi um cano solto no carburador. Não poderia ser tão simples, mas era. Tubo no lugar, um empurrão e o carrinho reviveu. Seguimos felizes, mas na pressa, não sei por que, não quis parar para colocar uma braçadeira ou o que o valha no caninho rebelde, que de quando em quando pulava fora de novo. E de novo era parar, encaixar e rodar, até que… a 30 míseros quilômetros de Campinas, o motor de partida – diga-se de passagem, original – não agüenta as repetidas solicitações e quebra, obrigando meu já companheiro de aventura a terminar a viagem sobre um reboque.

Aquele foi meu aniversário, desfrutado na estrada com o valente DKW, que encarou quase 300 km numa boa, e nem mesmo teria parado se eu tivesse consertado o primeiro problema direito. Mas não foi algo grave, e dali a nada rodávamos novamente.

Por enquanto meu amigo fica em Campinas, me levando com disposição para meus passeios sazonais. Vivo cada dia mais aficionado, restaurando-o em seus detalhes mínimos. Enquanto trabalho no Rio de Janeiro, sonho com os finais de semana, quando irei dirigi-lo. E sou um pouco criança novamente, toda a vez que dou a partida. Talvez, neste momento, um menino me olhe curioso da janela, e se pergunte que carro é aquele.

 André Luis Ferreira é advogado, professor universitário e feliz proprietário de um Belcar ‘64

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